31.5.12

Salumeria Roscioli


Acho que não preciso dizer mais. Em 6 dias de Roma, jantei 3 vezes no Roscioli. Tornou-se de um momento para o outro “minha casa”, meu colo, e a certeza de comer sem chances de erro. Na terceira vez  que lá estive, foi bem isso. Sozinha na cidade, última noite, só confort food, garçons que já haviam se tornado “amigos” e um dos donos, Alessandro Roscioli, oferecendo espumante para me distrair da demora pela mesa, que embora reservada, (condição essencial ), não era liberada pelo cliente anterior.


Ali Roma se apresentava inteira nos sabores e nas paisagens imaginárias gravadas em mim desde a infância. Salumeria  Roscioli é mercearia e restaurante.  Na vitrine , logo na entrada, queijos,  embutidos e presuntos de vários lugares da Europa, pata negra espanhol, presuntos de porcos pretos portugueses e claro, os melhores Parma  italianos. Nas prateleiras, vinhos de todas as regiões da Itália, de grandes , mas sobretudo de pequenos produtores especiais.  Tutto perfetto !




Por conta da minha freqüência pude experimentar várias coisas, e repetir outras pelas quais me apaixonei, como a salada de rúcula selvática e alcachofras de doçura plena  que repeti todos os dias. Os arancini, bolinhos de arroz sequinhos, não precisei pedir, faziam parte da acolhida diária.  




Com os pães deliciosos do couvert, fabricados pela famosa padaria,  Antico Forno Roscioli, dos mesmos proprietários , provei a mortadela, apresentada no cardápio como a “verdadeira de Bologna”, artesanal , servida com Parmigiano “de vacas castanhas” maturado 36 meses, e posso assegurar que era, com certeza um outro produto do que aquele que estamos habituados a comer .




Em outro dia provei um presunto sugerido pelo “amigo” garçon que não pude recusar . Muitos dos  pratos do menu vem com os ingredientes com “nome e sobrenome”. São provenientes dos melhores produtores da Itália. Então um simples Carbonara  ou um Cacio e Pepe, especialidade romana por excelência, duas das massas que experimentei, estavam excelentes e irretocáveis  . 




Permanecendo nos clássicos, como sempre foi minha intenção ali, a bisteca Fiorentina, sequinha servida com purê foi a opção certeira em  um dia e no outro um rosbife servido com pequenas batatas mostrou a excelência da carne “de pedigree” cujo nome não gravei para escrever aqui. 


Um Amarone, do Veneto, encorpado e com personalidade nos alegrou nesse percurso.




Não comi sobremesa, pois o café ( não existe café melhor que os da Itália !) era servido com essas roscas para serem banhadas no chocolate quente derretido, amargo e finíssimo !



Ótimas lembranças gustativas desta viagem de tão poucos dias.

Salumeria Roscioli
Via dei Giubbonari, 21                                     
Campo di Fiori     Roma
Tel 06 6875287
Antico Forno Roscioli
Via dei Chiavari, 34
Campo di Fiori      Roma
Tel 06 6864045



26.5.12

Atente os ouvidos

Basilica de San Marco - Veneza - Cúpula do Genesis
Você já se deu conta da quantidade de pessoas que se cruza durante o dia que estão falando de deus, apostolando, citando versículos e evangelhos, doutrinando ? Preste atenção e me diga.

No supermercado o repositor da gôndola de verduras fica buzinando na orelha do repositor da das frutas. Já cruzei com essa situação várias vezes e me ocorre que deve ser “eficaz” , porque a vitima não tem por onde fugir,  pois tem que cumprir o cronograma de trabalho, não pode virar as costas e ir fazer outra coisa em outro lugar. Essa missão doutrinadora está tomando conta das cidades. Andando na rua você cruza com pessoas “apostolando”. No ônibus, no metrô,  tem sempre alguém falando com veemência e entusiasmo para um outro que ouve indefeso.


São Benedito - Mouro
Comecei a refletir sobre isso mais seriamente quando fui buscar meu carro que havia ficado 4 dias na oficina . Ao ligar o rádio, para minha surpresa, percebi que toda a minha programação de estações favoritas estava reprogramada  em rádios evangélicas, com pastores gritando contra o demônio e os pecados da humanidade. Se não tivesse tão atrapalhada de trabalho teria dado meia volta e voltado à oficina para que o distinto “apóstolo” devolvesse meu livre arbítrio na escolha das estações que escuto no meu carro !


E outra. Quantas pessoas passaram a incorporar o “vai com deus” ,“fica com deus” nas suas saudações de despedida. Não sou atéia, muito pelo contrário, mas confesso que esse hábito, jogado assim ao léu, me incomoda bastante . Esse tipo de adeus era carinhosamente murmurado por algumas mães, madrinhas ou tias evidenciando um sentido amoroso de cuidado, muito maior que religioso. Agora banalizou-se, virou “mandinga”parece.


Sebastien Munster -Les monstres marins & terrestres lesquelz  on trouve en beaucoup de lieux es parties septentrionales - Cosmographie Universelle - 1560

São exemplos pequeninos, cotidianos, para não falar das guerras religiosas através da história e tão cruentas ainda nos dias de hoje . Gente matando e morrendo por uma fé que acreditam “superior” a do seu vizinho.

Leio todos os suplementos de turismo dos jornais. No Estadão de 15/5  a coluna do “Mr Miles” , onde viajantes colocam suas dúvidas e comentários para serem respondidos pelo colunista,  chamava-se : “Quer falar ? Então ouça primeiro.”  Leia“Mr Miles”  responde a um pastor que vai se juntar a um grupo de outros em Moçambique, para “ensinar” a palavra do senhor ao “sofrido povo daquele país”. Com toda a verve e educação características de seu estilo ele coloca firme e delicadamente sua posição sobre o ato de viajar para descobrir o mundo e , desfia considerações importantes sobre atitudes doutrinárias através dos tempos  resumindo : “... cada povo tem sua própria maneira de rezar e agradecer “ . Ouça.

Tenho um amigo budista que me descreveu as religiões como uma roda de bicicleta. Elas estão representadas nos aros que convergem para o centro, que é o mesmo para todas. Quando mais perto você estiver dele mais próxima sua religião estará da outra. É isso .

Pela diversidade e liberdade, que Deus abençoe a todos nós !


15.5.12

Tessituras

Royal Porcelain Bowl -  Ca 1900 - Áustria
Com certeza eram outros tempos. E, não faz muito. A vida parecia mais fácil, mais simples, mais doce... O relógio não voava e esta sensação de estar sempre em débito não existia. Sem ter feito o que gostaria de fazer, sem ter lido o que gostaria de ler, sem ter sabido o que gostaria de saber, sem ter encontrado quem gostaria de ver. E mais, comida não estava na moda !


Cozinhar era uma coisa normal ligada ao cotidiano e à história das famílias . Não existia por aqui o arroz italiano, ‘flor de sal’, aceto balsâmico... Foi então que conheci Dona Martha. Mestra cozinheira. 


Paul Cézanne - La table de Cuisine
Para mim ela lembrava sempre uma princesa austríaca sentada ereta em sua poltrona (encostando o dedo indicador dobrado na ponta do nariz enquanto refletia sobre algum assunto ) soberana, no reino da sua cozinha. Ela não precisava  dessas novidades, de engenhocas ou panelas especiais para  transformar em obras primas os nossos ingredientes de todo dia. Alem do dom especial ela trazia a cultura européia. Tinha vivido a guerra e acho que desde então lidar com os recursos disponíveis se tornara um desafio permanente.


Martha Kardos

Eu tive a sorte e o prazer de conhecê-la , e aprender com ela de duas maneiras diferentes.

Dona Martha organizava jantares semanais para sua família . Se não me engano eram às quartas feiras. Seus filhos e netos deveriam confirmar a presença e estavam autorizados a levar um ou dois amigos, sempre com consulta e autorização prévias. O número de pessoas não podia exceder o número de lugares da sua mesa. Como amiga de seu neto André tive a honra de ser convidada  algumas vezes para estes jantares e ali todos os detalhes me encantavam. Fui introduzida ao ritual da comida. Aprendi que cozinhar podia ser muito mais. Compreendi este doce prazer que é planejar,  preparar e oferecer. O chique da simplicidade.  Nesse jantares todos os detalhes estavam pensados para conduzir ao prazer e à surpresa.

© Katie Quinn Davies
 Lembro-me sempre e invejo, seu arquivo de fichas com os nomes dos convidados. O menu completo servido estava lá anotado. Ninguém, salvo pedido expresso, jantaria uma receita repetida. No código de hospitalidade de Dona Martha isto era inconcebível .



Sua mesa ficava encravada em um canto aconchegante da cozinha.
Cozinha e sala de jantar indissociáveis, parte da sua vida.

Meu segundo aprendizado com Dona Martha deu-se em suas aulas de cozinha propriamente ditas. Aí a coisa era séria. As brincadeiras estavam proibidas. Não era à toa. Toda a educação e cultura européia afloravam . Foi lá que ouvi falar de técnica culinária. A maneira correta de fazer uma omelete, o molho branco, a massa ‘podre’. Como misturar claras em neve e derreter gelatina em folha. A ordem de entrada dos ingredientes em uma receita.

Ao compartilhar seus conhecimentos multiplicava uma das suas principais características, a generosidade.

A presença de um neto fez com que nosso curso fugisse um pouco do formato habitual. Montamos um grupo de amigos, homens e mulheres. Não eram muitos os homens que se aventuravam na cozinha naquele tempo. Como éramos todos amigos, dividíamos a compra de ingredientes, fazíamos as aulas aos sábados à tarde e nos encontrávamos à noite para jantar nossa obra. Que festa!

© Katie Quinn Davies

Passeávamos por vários clássicos de Martha. Gulasch, tradicional e à maneira austríaca por exemplo. Em nenhum lugar comi outro igual. Sua receita é um tesouro! E também conseguimos algumas receitas da vó Martha. Pequenos mimos de avó para seu neto, guloseimas saboreadas em lembranças de tardes infantis. Nosso grupo (bem mais crescidinho)  pôde experimentar o bolinho de batata e ameixa , a omelete quente de geléia. Receitas onde o fio da descendência era tecido,  e assegurava aos netos a concretude da pertinência .
 Orgulhosamente me sinto pertencente à linhagem dos filhotes de Martha. E, para mim está muito claro que eram outros os tempos. As pessoas com a, educação, classe e a gentileza de Martha infelizmente andam rareando no século XXI.


3.5.12

Me faz muito gosto



Mexilhões à moda de Aveiro


Lavam-se e limpam-se das pequeninas conchas 3 litros de mexilhões dos maiores, apanhados nas águas vivas (Lua Nova ou Lua Cheia). Tirados da casca, extraída toda a areia e os bissos, escorrem-se bem, secam-se num pano e enfiam-se pelo meio em palitos de 10 centímetros de comprido, ficando cada palito bem cheio. Fregem-se a seguir os mexilhões enfiados, em 4 decilitros de azeite fino não devendo ficar muito fritos. Põem-se em frascos altos enchendo-os bem e cobrindo os mexilhões no frasco com vinagre forte e completando o enchimento com o azeite onde os mexilhões fritaram depois de ferver por mais 5 minutos com uma folha de louro, dois alhos partidos ao meio, dez bagos de pimenta e o sal que a prova acusar antes de deitar o azeite. Conservam-se assim por meses.

( receita retirada em reprodução literal, do livro Culinária Portuguesa – António Maria de Oliveira Bello –Olleboma – ed Assírio & Alvim – Lisboa, Novembro de 1994 – 1ª edição1936)

Receitas , quando bem escritas, são passaporte para lugares distintos.
Uma nostalgia de viagem ou o aconchego escondido de um colo.
São guias para nossas próprias aventuras. Experimente.

As fotos são de Rui Ornelas e são de Rias Bajas- Galizia estão no Flickr