24.2.11

Divagações sobre o tempo

Deserto do Sahara
Por Tanya Volpe

Vocês podem achar que eu tenho cem anos. Meu neto com certeza acha... Mas , juro, na maioria das vezes me sinto ... (?!?!)  balzaquiana , hum ... quando penso nas coisas que eu ainda quero fazer, lugares a conhecer, livros para ler, inventar, essas coisas...  Eu sei que só preciso não me impressionar com os espelhos .

Em outros momentos confesso que adoro me olhar neles! Nossa !!!  Ainda estou muito bem ! (?!?!?) Para quem está quase chegando aos %&+?#%$@ !!! Duas amigas que acabaram de cruzar o limiar, me asseguram que é bom não me iludir . É completamente diferente completar, e imaginar os %&+?#%$@ . Vamos ver.

Toda essa introdução é para dizer das surpresas que a internet me traz!

Tudo começou com uma  safra de limões siciliano que encontrei no mercado e estavam esplêndidos! Cheirosos , casca brilhante, pequenos no tamanho certo. Era o momento de refazer meu estoque de citrons confits  da geladeira. Não posso ficar sem eles. Entro em crise de abstinência....



Lave e seque os limões. Corte-os em cruz, no sentido do comprimento mantendo os pedaços presos em uma das extremidades. Coloque bastante sal marinho dentro de cada limão e arrume-os bem apertados dentro de um vidro bem limpo. Molhe com o  suco de 2 limões. Tampe (a tampa do vidro não deve ser de metal, se for, proteja-a com um plástico para não oxidar ) e deixe descansando por 1 semana na geladeira. Gire o vidro, uma vez por dia para que o sal e o suco de limão se espalhem por todos os limões . Aí eu encho o vidro  com azeite. (que eu não vou usar, coloco apenas para “proteger” os limões ). Volto então o vidro à geladeira e depois de uma semana já posso utilizar.  Mas, eu prefiro que eles fiquem curtindo mais tempo.
 Ás vezes forma-se um mofo por cima. Não é nenhum problema. Tire-o  quando for utilizar o limão e lave-o muito bem. (não sou  eu quem diz para não se importar com o mofo, várias receitas falam disso e eu já comprovei na prática).

Quando for utilizá-los retire a quantidade necessária, lave bem e descarte o miolo e as partes brancas, Só a casca entra na preparação de pratos marroquinos  como as tajines de frango, carneiro ou vegetais. Serve como condimento para  peixes , ou fica delicioso em uma salada de bacalhau....Como disse, fico insegura se não tenho dessa conserva na geladeira. Dura muuuuitos meses!


Em uma ocasião rara e especial , fazer um jantar para minha sogra e o marido, que moram fora, comecei a planejar o menu. Estou vivendo uma fase “epicée” onde cheiros e sabores me transportam para outros lugares no mundo em viagens imaginárias através do paladar e do olfato.


A conserva de limão que fiz e o cominho em pó que ganhei de uma amiga , vindo direto do Marrocos me inspiraram .Essa  especiaria marroquina “legítima”  é fresca, cheia de vida, instigante! Não tem o cheiro de “gaveta” que encontramos nos cominhos daqui. A mistura, limão e cominho,  lembra  peixe, chama couscous marroquino. E o calor escaldante de fevereiro também.

Resolvi inventar um ensopado de peixe para comer com couscous. Comprei 2 tipos, robalo e cherne. Trouxe as cabeças e espinhas e fiz 2 caldos separados. Queria sentir as diferenças de um e de outro. O de robalo ficou  muito mais gorduroso, portanto mais saboroso porque (infelizmente) as gorduras “transportam “ melhor os sabores. Comprei camarões e também fiz um caldo com as cabeças e cascas.  Pensei que misturando os caldos e reduzindo-os seria um bom começo. Tinha uns mariscos no freezer que eu poderia incorporar no final. Foi o que fiz.

Anoitecer em Marrakesh


Há mais de 30 anos, (.há fatos inegáveis, olhando no espelho ou não...) comprei em uma grande feira de livros velhos e usados em Paris, um livro que se chama “A gastronomia através do mundo” de Raymond Oliver. É um daqueles  livros de capa dura encapada de tecido ”gelo” , com diagramação bem antiga , alguns desenhos e meia dúzia de fotos B&P, mal impressas e embaçadas. Às vezes traz páginas de um laranja espantado bem característico do período.

Nele tem uma receita de couscous Royal, que adotei, com algumas variações devidamente  anotadas em um papel que “mora”dentro do livro, como a minha receita para o prato e tem me  acompanhado em várias comemorações entre amigos, porque é um prato fácil e lindo para fazer para bastante gente.Peguei o livro na estante para lembrar dela e inventar a minha receita para os peixes.

E, pela primeira vez me perguntei (acredita?): quem escreveu este livro? Quando o comprei eu começava a “ampliar” meus horizontes culinários e gostava desses textos de “cultura geral”. O livro, uma edição de 1963 não traz nenhuma informação sobre o autor, que talvez tenha se perdido na sobrecapa de papel que costumava envolver esses volumes. Então, google it!

Em “google it” descobri que o autor era chef e dono do Le Grand Vefour, famoso restaurante “estrelado” em Paris . Foi o primeiro chef a ter um programa na televisão sobre culinária, “ Art et  Magie de la Cuisine” que ficou 14 anos no ar. Ele dividia essa emissão  com  Catherine Langeois , que tem entre outros feitos da sua biografia ter sido noiva  de Miterrand, muitos anos antes de que ele se tornasse presidente da Republica Francesa (e...“bígamo”) . Êta  mundo pequeno!!!!

Na receita, usei échalote, quando eu a encontro adoro, porque é mais suave que cebola , solta um perfume incrível quando está fritando no azeite (ou manteiga) e tem um sabor delicado. Juntei, alho poro, cenoura e erva doce, cortados em cubinhos pequenos (mirepoix), refoguei um pouco, temperei com cominho, gengibre, pimentas.                             
Juntei os caldos de peixe e camarão, e um pouquinho de caldo de galinha que paradoxalmente, equilibra o sabor dos  outros caldos. Depois tomate sem pele e sementes e um amarradinho de cheiros, com salsa, tomilho-limão , coentro, louro. Cozinhei para reduzir a um terço. Coloquei os peixes e depois de 15 minutos os camarões. Contei mais 5 minutos, juntei os mariscos e mais uns minutinhos. Fora do fogo , um punhado de folhas de cerefólio. Servi com couscous marroquino temperado com citron confit, salsinha e ciboulette.


Deserto do Sahara
Tamanho do mundo, velocidade do tempo, ... se der, sente para pensar, ...ou então para comer. Sempre!

Fotos do Sahara e de Marrakesh de Simone Amar ( amiga que me trouxe o cominho fresco)

Nota: O livro traz receitas muito boas que seguem “inteiras”  até hoje. Para mim a comprovação aparece em uma receita de feijoada bem decente, salvo na parte em que o autor manda marinar uma carne e assar para servir junto, que confesso, não me pareceu de todo mal. Imaginei idéias divertidas para cometer essa heresia...