21.12.18

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,

Rinko Kawauchi - Halo



li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

de A Faca não Corta o Fogo Herberto Helder



18.10.18

Os Justos

Mark Rothko - No.5 1950 (dated on reverse 1949)

Os justos

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o mundo.


Jorge Luis Borges
Poesia Borges, Companhia das Letras, 2009, p. 346



19.9.18

Paper Music - William Kentridge & Philip Miller [Trailer]




Paper Music

La représentation du 19 septembre se tiendra en la présence exceptionnelle de William Kentridge

William Kentridge, accompagné du compositeur Philip Miller, propose une combinaison de nombreuses formes artistiques. Paper Music est un petit univers sensoriel, mélancolique et visionnaire. 

Music, c’est une pièce pour piano et deux voix de Philip Miller. Parfois, le piano est seul, et dans sa rêverie mélancolique, il nous rappelle Ravel et Glass ; parfois, il est accompagné, et le trio nous engloutit par son énergie, sa maîtrise et son humour. Paper, c’est une déambulation de Kentridge, chez lui, dans son atelier ; à travers son regard, on découvre les vicissitudes des mots, on joue avec les matériaux, on voit apparaître de l’encre de Chine et des traces de café et, grâce à elles, on accède à une contemplation nouvelle du monde et du quotidien. Paper Music est un ciné-concert de magie sombre, faisant suite à deux collaborations des artistes sud-africains, The Refusal of Timeet Refuse the Hour. Cette œuvre est pour eux une manière d’explorer des thématiques nouvelles comme de rendre hommage aux inventeurs et bidouilleurs du cinéma, dont Georges Méliès fait évidemment partie.

Ann Masina, voix
Joanna Dudley, voix
Vincenzo Pasquariello, piano
William Kentridge, conception vidéo
Philip Miller, composition
Greta Goiris, création costumes

Philarmonie de Paris - Cité de la Musique
19 et 20 Septembre 2018   20h30

7.9.18

O amor

Auguste Rodin  Danseuse nue vers 1900

O amor

“Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.
– Te cortaram? – perguntou o homem.
– Não – disse ela – Sempre fui assim.
Ele a examinou de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:
– Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.
Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os ungüentos.
Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:
– Não te preocupes.
Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.
Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:
– Encontrei! Encontrei!
Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.
– É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso de flores e frutas invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, despreendiam-se vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta formosura que sóis e deuses morriam de vergonha”.

Este conto pertence ao livro Mulheres, de Eduardo Galeano (1997) L&PM Pocket

19.8.18

Provocação

Dennis Adams- Patriot 

risca o teu fósforo no meu corpo
o que não somos saberá o fogo

arrudA – a representação matemática das nuvens – p 91

31.7.18

Eu me Encontrarei com meu Querido



                         



Vedrò Con Mio Diletto

Vedrò con mio diletto
L'alma dell'alma mia
Il core del mio cor
Pien di contento

Vedrò con mio diletto
L'alma dell'alma mia
Il core del quisto cor
Pien di contento

E se dal caro oggetto
Lungi convien che sia
Sospirerò penando ogni momento

Vedrò con mio diletto
L'alma dell'alma mia
Il core del mio cor
Pien di contento


Eu me encontrarei com meu querido,


Eu me encontrarei com meu querido,
(Que é) a alma de minha alma
(que é ) o coração de meu coração,
cheio de alegria.

Eu me encontrarei com meu querido,
(que é) a alma de minha alma
(que é ) o coração deste (meu) coração,
cheio de alegria.

E, se desse ser querido
distante convenha que eu esteja,
suspirarei, sofrendo, a todo
momento ...


Eu me encontrarei com meu querido,
(que é) a alma de minha alma
(que é ) o coração de meu coração,
cheio de alegria.


26.7.18

O Estilo - Herberto Helder

                                                                                                                                                 
                      



O Estilo

– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos , do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco - disse. - devo estar louco.
– Tem loucos na família? - perguntou o médico.
– Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas,homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios - disse eu. - Sei histórias tenebrosas, acerca da vida. De que me servem barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. - João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n. º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações a três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. Veja agora esta artimanha:

As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
(...)

- E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente.

Trata-se do excerto de uma poesia. Gosta de poesia? Sabe o que é a poesia? Tem medo de poesia? tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam, Como? Loucamente. Quem suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não sou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta o estilo.
Sabe do que estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?
Talvez o senhor seja mais inteligente que eu.



Herberto Helder
Os Passos Em Volta
Tinta da China  2016

18.7.18

Passarinho




                                                                                                                                                                                                                                 



Passarinho
Tuzé De Abreu


Cantar como um passarinho
de manhã cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Bate as asas passarinho
Que eu quero voar
Bate as asas passarinho
Que eu quero voar.

Me leva na janela da menina
Que eu quero amar
Me leva na janela dela
Que eu quero cantar
Cantar como um passarinho
De manhã bem cedinho
Lá na galha do arvoredo
Na beira do rio
Cantar como um passarinho
Como um passarinho
Cantar como um passarinho
Como um passarinho.



Gal Costa - Passarinho- Tuzé de Abreu- Album  India - 1973



21.6.18

A representação matemática das nuvens

Jackson Pollock

e então
os homens
foram 
virando 
cavalos
não 
pela força
das pernas
mas pela 
tristeza
dos olhos
e então 
os homens
foram 
virando 
cavalos
e as 
mulheres
uma espécie

de pássaro

A representação matemática das nuvens -  arrudA - Editora Patuá - 2014

15.6.18

Sete Anos por Aqui

Rinko Kawauchi

Tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado


Alice Ruiz, no livro “Dois em um”. São Paulo: Iluminuras, 2008.

30.5.18

Sobrevivência

Auguste Rodin - Isadora Duncan



Inventei um amor pelo prazer de viver. Inventei que dorme por aqui, que canta e assobia, que puxa pela mão. Para dançar. Inventei a teoria da meia-luz, a passagem desse vulto se espelha no teto. Persigo esse amigo eterno que me vê através da pele. Temos a proximidade dos átomos. Sirvo um café e me chega na boca um doce para morder. Experimenta? Nosso silencioso estar junto é laranja como o outono. Quanto mais quietos nos movemos pela casa, mais nos amarramos um ao outro. Nada dizemos. Dançamos seriamente alegres.  

Regina Dias - Facebook 29 Maio 2018



4.4.18

Paulo Pasta

Paulo Pasta - 2018 *

Exposição " Lembranças do Futuro" - Galeria Millan-Anexo - SP    
24 mar a 28 abr 2018

"não basta a intenção, o projeto tem que ser submetido à ação diária, persistente, vagarosa, tornando-se assim destino" - Paulo Pasta no folder da exposição.

* tela fotografada na exposição

29.3.18

Cena da Paixão

The Deposition of Christ. Rogier Van der Weyden. 

Detail: Maria Salomé. The Deposition of Christ. Rogier Van der Weyden.

Detail: St John’s eye. The Deposition of Christ. Rogier Van der Weyden. 
Detail: The Virgin Mary’s clothing. The Deposition of Christ. Rogier Van der Weyden.
Detail: From l to r: Mary Cleophas, St John and Maria Salomé. The Deposition of Christ, Rogier Van Der Weyden

14.3.18

Guardar



Guardar


Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.


Antonio Cícero

Este poema foi extraído do livro "Guardar - Poemas escolhidos", Editora Record - Rio de Janeiro, 1996, pág. 337.

12.2.18

Mirante



Mirante



Todas as manhãs

eu me sento durante uma

hora numa almofada

de quinze

centímetros

de altura

. . .este é o meu mirante

a vista daqui

não cansa


de surpreender.

.

Adriana Lisboa -  "Pequena Música" - Ed Iluminuras