– Se eu
quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita
coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não
consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num
quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo
levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um
volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira,
está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito
depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é o
modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental
de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a
desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três
tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual,
dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos , do Amor ou
da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro
consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as
noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco - disse. - devo estar louco.
– Tem loucos na família? - perguntou o médico.
– Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos,
prostitutas,homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios - disse eu. - Sei histórias tenebrosas, acerca da
vida. De que me servem barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo:
conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem
novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas
veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a
prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de
orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar
grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e cinemas. Procure o
seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando
matemática e ouvindo um pouco de música. - João Sebastião Bach. Conhece o Concerto
Brandeburguês n. º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão
harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações a três incógnitas.
Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui
um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples:
quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis
erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos,
e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz
obscura... Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso
o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental.
Palavras fundamentais, curioso... Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença,
Medo, Morte, Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. Já nada significa. É um
modo de alcançar o estilo. Veja agora esta artimanha:
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
(...)
- E nada mais somos do que o Poema onde as crianças se distanciam loucamente.
Trata-se do excerto de uma poesia. Gosta de poesia? Sabe o que é a poesia? Tem
medo de poesia? tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o
estilo.
Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na
eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam, Como? Loucamente. Quem
suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem
que não sou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes
falta o estilo.
Sabe do que estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o
senhor não é estúpido, mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o
género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a
poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na
posse de um estilo. Mas escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa
loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande
segredo da nossa humanidade?
Talvez o senhor seja mais inteligente que eu.
Herberto Helder
Os Passos Em Volta
Tinta da China 2016