31.12.21

A Vida na Hora

 

Foto  Pentti Sammallathi -Korea, Seul, 2016 Three Birds

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não
conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.


E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

 

Wisława Szymborska, Poemas

Foto Pentti Sammallathi- Delhi, India, 1999 Flock of Birds



Que tenhamos a sabedoria de escolher boas coisas em 2022.
Boa sorte a todos nós!


12.11.21

Espera

 



Deito-me tarde 

 Espero por uma espécie de silêncio 

 Que nunca chega cedo 

 Espero a atenção a concentração da hora tardia 

 Ardente e nua 

 É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho 

 É então que se vê o desenho do vazio 

 É então que se vê subitamente 

 A nossa própria mão poisada sobre a mesa 


 É então que se vê passar o silêncio 

 Navegação antiquíssima e solene 


 “Espera”, Sophia de Mello Breyner Andresen


14.6.21

Dez Anos por Aqui

PIRATA 

 Sophia de Mello Breyner 

 Sou o único homem a bordo do meu barco. 
 Os outros são monstros que não falam, 
 Tigres e ursos que amarrei aos remos, 
 E o meu desprezo reina sobre o mar. 

 Gosto de uivar no vento com os mastros 
 E de me abrir na brisa com as velas, 
 E há momentos que são quase esquecimento 
 Numa doçura imensa de regresso. 

 A minha pátria é onde o vento passa, 
A minha amada é onde os roseirais dão flor, 
 O meu desejo é o rastro que ficou das aves, 
 E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

27.1.21

Ao Rio

 

Paul Cézanne - Bridge across a pond - 1890 - Puskin Museum

AO RIO


Ó rio – clepsidra de água metáfora da eternidade

entro em ti cada vez tão diferente

que poderia ser nuvem peixe ou rocha

e tu és imutável como o relógio que marca

as metamorfoses do corpo e as quedas do espírito

a lenta decomposição dos tecidos e do amor



eu nascido do barro

quero ser teu aluno

e conhecer a fonte o coração olímpico

ó tocha fresca coluna cantante

rochedo da minha fé e do desespero



ensina-me ó rio a ser teimoso e persistente

para que mereça na última hora

repouso na sombra do delta imenso

no sagrado triângulo do princípio e do fim


Zbigniew Herbert //Tradução: Ana Cristina César e Grazyna Drabik