27.12.11

Bonne Année

Os Náufragos da Louca Esperança´- Théâtre du Soleil -  2011

Quando eu era pequena gostava de imaginar histórias que se desenrolavam em capítulos, como nas novelas de tv. Tentando dormir, me embalava com minhas novelas românticas onde sempre eu era a protagonista . A cada noite retomava do pedaço deixado no dia anterior e seguia até onde eu , o “bem”, tinha um jeito de triunfar no final. Geralmente isso acontecia nas férias quando depois de ler o suficiente, ainda sem sono, soltava a imaginação.

Passei muitas férias em SP, porque meus pais trabalhavam e tinham férias de um mês por ano enquanto nós estudantes, naquela época,  tínhamos direito a 3 meses. Nesses dias eu dormia e lia muito. As leituras se estendiam até altas horas quando me escondia em uma cabana debaixo dos lençóis de minha cama, com uma lanterna acesa para não ser “importunada” pelos meus pais no melhor da história. Lembro bem de ter lido "Os Doze  Trabalhos de Hércules" de Monteiro Lobato, nesse esquema “safári”, e era quando me cansava da precariedade da “sala de leitura” , que eu me transformava em  “novelista”.


Quando cansava disso também, partia para outra faceta imaginativa. Pensava, uma ação, um fato, qualquer coisa, e me dizia que, com certeza, num mundo tão grande, aquilo estava acontecendo, naquele exato momento, em alguma lugar! E assim retratos do mundo passavam pela minha cabeça, como um garoto ganhando um trem elétrico na India, outro colhendo maçãs na Alemanha, uma mãe tirando um bolo de chocolate queimado do forno em Poços de Caldas... , uma criança nascendo ( várias), no Japão, em Pekin ( que não existe mais) uns velhinhos morriam deixando netos super tristes. No Turquistão um caminhão batia num poste, ou um barco afundava em Java. Alguém  dava de cara com uma baleia, uma menina surfava dentro de um tubo, uma onda imensa varria uma praia ( ainda não ouvira falar de tsunamis) e as pessoas claro, conseguiam se salvar. Porque quando eu imaginava alguma coisa mais triste, horrível, como:  tem um menino perdendo o pai neste momento, por exemplo, corria em mudar de idéia para não estragar meu sonho de um mundo em movimento constante repleto de surpresas e ... boas coisas.

Os Náufragos da Louca Esperança´- Théâtre du Soleil -  2011
Este ano tive a oportunidade de assistir a mais um espetáculo do Thèâtre du Soleil, “Os Náufragos da Louca Esperança (Auroras) “.trazido  pelo  SESC/SP, como o anterior Les Éphémères, que considero o espetáculo mais lindo que vi na vida.

Para quem não sabe o Thèâtre du Soleil é uma companhia francesa de teatro criada por Ariane Mnouchkine nos anos 60 formada por atores de variadas nacionalidades que se propõe a fazer teatro popular de qualidade.

“(...) Ligada a idéia de “grupo de teatro”, Ariane estabelece a ética do grupo sobre regras elementares: os profissionais formam um todo só, todos recebem os mesmos salários e o conjunto da companhia se envolve no funcionamento do teatro ( manutenção diária, acolhimento do público no momento do espetáculo), o Thèâtre du Soleil é um dos últimos grupos de teatro a funcionar como tal na Europa. (...). Sua trajetória é assinalada por uma interrogação constante quanto a seu papel, a função do teatro e sua capacidade para representar a época atual.” (...) *

O argumento desse novo espetáculo saiu de um livro póstumo de Julio Verne que relata a história de um grupo de pessoas que resolve mudar de continente no fim do século XIX, às vésperas da 1ª Guerra , em busca de uma vida nova. Porém um naufrágio os leva a um lugar desabitado e gelado, onde têm a chance de criar uma nova sociedade, uma vida civilizada fora da civilização, uma sociedade socialista.


Conforme o trabalho de criação coletiva do grupo teatral foi se desenvolvendo, resolveram introduzir e homenagear o cinema que nascia. Imaginaram um grupo de pessoas que decide fazer um filme sobre esse livro do Júlio Verne. Então as duas histórias vão se  desenvolvendo em paralelo,  a do grupo que fazia cinema e a dos náufragos da Patagônia.

De novo como uma criança, me vi enredada e deslumbrada com o que se passava em cena. O espetáculo trabalha lindamente   a construção da ilusão. Mistura, teatro, cinema, circo, atuação dentro da atuação. Os cenários, com a ajuda ativa dos atores vão se transmutando com elementos aparentemente simples, como panos, cordas, painéis pintados e vão se transformando em castelos, navios, tempestades, paisagens de gelo, em vendavais, que remetem aos descaminhos da Europa naquele momento, 1914 , e falam de uma crise, jamais vista por que passa o continente europeu nos dias de hoje.   
E , ao mesmo tempo, reencena a própria condição do Théâtre du Soleil à medida que relata a brava resistência de um grupo de artistas frente a guerra que começa a tomar corpo.É muito tocante acompanhar a manifestação artística em um de seus momentos mais sublimes.

Os Náufragos da Louca Esperança´- Théâtre du Soleil -  2011
Que  consigamos abrir espaço em 2012  para as utopias, auroras oníricas que nos permitam , com a pureza das crianças, vislumbrar a possibilidade de concretizar nossas esperanças mais banais e acolher todas as surpresas.

Que a nossa imaginação seja fértil e, mantendo a coerência ética consigamos como preconiza a última fala linda da peça, “Levar (noss-)os barcos na viagem escura à luz obstinada de um farol”. 
Sempre !!!
Ótimas viagens !

* Texto retirado do programa do espetáculo: 
   Os Náufragos da Louca Esperança (Auroras)
   De 5 a 23 de Outubro 2011
   Sesc Belenzinho -SP