Para escrever matérias para Marie Claire e para o France Guide, publicação
anual do Ministère des Affaires
Etrangères francês, participei anos atrás, de um programa que o
Relais&Châteaux oferecia chamado L'Ecole des Chefs. Neste programa restaurantes
estrelados que pertencem à cadeia Relais Gourmands espalhados por vários países,
dispunham-se a receber “alunos” para um estágio em suas cozinhas por 2 ou 5
dias. Quem aceitou me receber para as matérias foi o chef M. Michel Rostang , do restaurante de mesmo
nome, agraciado com 2 estrelas.
Muitas fantasias emocionadas passaram pela minha cabeça diante
da possibilidade de conhecer “por dentro” as cozinhas de um grande restaurante
francês, acompanhar o trabalho de um chef estrelado e participar, embora por
pouco tempo da rotina da brigada de trabalho.
Não tinha conseguido
informações muito claras sobre o programa do meu “curso” o que aumentava minhas
expectativas.
Comecei a criar hipóteses , listando "grandes dúvidas"
sobre procedimentos culinários que talvez pudessem ser elucidadas. E lembrava
histórias de filmes , (Sabrina, minha paixão) tentando afastar a idéia
de”grandes fracassos” na frente do chef ao..., descascar batatas, talvez.
Apresentei-me no restaurante de M. Rostang, no XVIIeme no
horário combinado e fui imediatamente apresentada a Yannick Papin , chef
executivo responsável pelo dia a dia da cozinha, que seria meu guia na emocionante empreitada.
Entregou-me um jaleco de
cozinheiro ("veste de cuisinier") especialmente confeccionado para
mim em algodão com meu nome e o do restaurante no peito. Confesso que estava
tão nervosa que só reparei o meu nome, lindamente bordado, no meio da tarde.
Era uma cortesia do Relais&Châteaux
para os frequentadores dos cursos. Claro que guardo-o com orgulho até hoje.
Ao querer saber sobre o que estava programado para mim,
compreendi o porquê das informações pinceladas. O “curso”, idealizado para
pessoas com alguma base culinária, funcionava (teoricamente) como um
"realizador de desejos" particular . O ”programa” era montado segundo
o interesse do participante que podia ir desde o funcionamento da cozinha
propriamente dita, às compras, ao serviço de vinhos, ou de queijos.
Rapidamente montei a programação que me daria condições de obter
o maior número de informações no tempo que eu dispunha.
Neste primeiro dia para minha surpresa e deleite fui contemplada
com um menu completo de almoço começando por adoráveis amuse-bouches, como um
mini 'club sandwich' como eles chamavam, bem quentinho com leve sabor de sardinhas fresquíssimas, criado
pelo chef. Seguia-se uma conchinha com
creme de abacate , coral de vieiras e caviar, servido com creme de alcachofras.
Que delícia! Depois um tartare de atum com melão Cavaillon acompanhado com gelatina semi fluída de melão e Sauternes. Como prato principal,
pequenos legumes (abobrinha, tomate e batata) recheados de carne de carneiro
macia e suculenta que se dissolvia na boca. Em seguida o grande momento. Para a
sobremesa M. Rostang veio sentar-se à mesa. Fez questão que experimentássemos a
sobremesa que havia sido incorporada no cardápio daquele dia. Pêssegos
deliciosos, em plena estação, recheados com um sorvete de baunilha e calda de
frutas vermelhas, servidos com uma fatia fina de pain d'épices saído do forno.
Uma variação moderna de “pêssego melba” clássica receita de Escoffier.
Combinei o meu programa para o dia seguinte. Ficaria o dia todo
na cozinha para acompanhar todo o processo. A mise-en-place do almoço, o
almoço, o desmonte, a preparação do jantar e o serviço de jantar.
Nove da manhã do dia seguinte, com a minha 'veste' e um avental
de trabalho comecei a extrair micro pedacinhos de carne das longas patas das araignées de mer que o chef Yannick me apresentara. As carnes
de um lado, as carapaças de outro. Claro que o meu trabalho foi lento e recebeu
o auxílio de um estagiário de cozinha a certa altura ,para apressar a
finalização. Tudo se transformaria mais
tarde em uma entrada servida à noite. Que orgulho eu sentia a cada vez que uma
das “minhas” marchava para o salão !
Onze e meia, antes de começar o serviço de almoço , era a hora
da brigada almoçar. Fazia parte do programa “L'Ecole des Chefs” refeições com a
brigada . O menu parecia bem apetitoso para o dia de verão. Salada de batatas,
enrolado de carne de porco, legumes cozidos, salada verde e mostarda Dijon. M.
Rostang almoçava a mesma coisa em uma mesa no salão. Gentilmente me convidou
para que sentasse com ele. Além da honra, ainda tive a possibilidade de
acompanhar a avaliação de um Bourgogne Blanc que estava sendo degustado para
ver se mereceria fazer parte da grande adega existente no subsolo do
restaurante. De sobremesa, cerejas e abricots comprados pessoalmente pelo chef
à caminho do restaurante. Com simplicidade M. Rostang descascou e dividiu um
abricot comigo, pensei: generosidade faz parte da essência de um grande
cozinheiro.
Bem, au travail! Ia começar o serviço do almoço. A cozinha
estava limpa a brigada a postos com suas vestes,
lenços amarrados no pescoço e toques
na cabeça . Naquele momento percebi que o melhor que eu poderia fazer era
assistir. Posicionei-me em um lugar que não atrapalhasse a movimentação do
pessoal, e com minha câmera fotográfica passei a documentar o que estava vendo. A cena
era orquestrada por Yannick que fazia a ponte entre o salão e a cozinha. Os
pedidos eram lidos com voz firme por ele e toda a brigada respondia em uníssono
no final da leitura: " Ouehh!!! “ Confirmando que iam dar andamento às funções que lhe cabiam na
feitura daquele pedido. M. Rostang dava umas entradas esporádicas, ajeitava
algum detalhe, provava alguma coisa. O seu trabalho já havia sido realizado
pela manhã em reunião com os chefs,
executivo e pâtissier.
O menu do almoço era restrito. A linha de montagem ficava mais
evidente e o ritmo era intenso mas
razoável . Com as últimas sobremesas sendo despachadas para o salão, os
cafés e os “assortiments de petits-fours”,
foi baixada a cortina na janela de vidro que mostrava o trabalho da
cozinha para o público. Então ela começava a ser novamente limpa e preparada
para o jantar.
Três horas de folga até voltarmos para o serviço.
Quando cheguei o trabalho já estava em andamento. A organização
e a tensão eram evidentemente outras. A temperatura na cozinha que pela manhã
já tinha sido alta, agora era muito maior. Até o final da noite ia ficar mais
ainda. Percebi que deveria ser mais invisível do que havia sido no almoço.
Bem, o que eu pude acompanhar nesta noite foi um espetáculo! A
quantidade de pratos oferecidos nos menus noturnos era imensamente maior. Os clientes
iam montando suas opções e esta combinatória fazia com que a quantidade de
pratos produzida fosse espantosa. Os designs diferentes de cada receita iam se
sucedendo sobre pratos e travessas das mais variadas formas e tamanhos que apareciam
em cima das bancadas de trabalho vindos não sei de onde, como num passe de
mágica. A leitura dos pedidos feita por Yannick se repetia num ritmo sincopado
e a aquiescência da equipe formava
como uma música que movia aquela grande usina. Os movimentos de todos eram
perfeitos, firmes e seguros. Todos cumpriam com competência seus papeis naquela grande performance : a
técnica a serviço da sensibilidade.
Minha admiração era enorme e eu não acreditava que pudesse estar
ali! Sem palavras para definir meus sentimentos, só conseguia pensar que eu
vivia uma situação ímpar que poderia ser comparada a estar assistindo ao vivo,
dentro do palco, um concerto dos Rolling Stones !!!