25.8.22

Rosa Mística

 

                                                         Jean-Bathiste Siméon Chardin


A primeira vez
que tive a consciência de uma forma,
disse à minha mãe:
dona Armanda tem na cozinha dela uma cesta
onde põe os tomates e as cebolas;
começando a inquietar-me pelo medo
do que era bonito desmanchar-se,
até que um dia escrevi:
”neste quarto meu pai morreu,
aqui deu corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte”.
Entendi que as palavras
daquele modo agrupadas
dispensavam as coisas sobre as quais versavam,
meu próprio pai voltava, indestrutível.
Como se alguém pintasse
a cesta de dona Armanda
me dizendo em seguida:
agora podes comer as frutas.
Havia uma ordem no mundo,
de onde vinha?
E por que contristava a alma
sendo ela própria alegria
e diversa da luz do dia,
banhava-se em outra luz?
Era forçoso garantir o mundo,
da corrosão do tempo, o próprio tempo burlar.
Então prossegui: “neste quarto meu pai morreu.
Podes fechar-te, ó noite,
teu negrume não vela esta lembrança”.
Foi o primeiro poema que escrevi.


Adélia Prado

(O Pelicano 1987)


20.7.22

Chapéu de Palha

 

Masao Yamamoto

 

Chapéu de palha 

Matilde Campilho

Fazes-me lembrar
um filme do Rohmer
ou o toldo vermelho
do Joaquim Manuel
Quando penso em ti
eu esqueço o lixo
que de manhã faz barulho
à minha porta
Pareces-te com o tempo
das amendoeiras
Tens tudo a ver com
a escadaria semi-invisível
que o mágico escavou
no rochedo atlântico
Sim tu pareces o Verão
Às vezes quando entras
quase dá para ouvir o ruído
do motor de um jipe
Um Lada Niva por exemplo
(de cor azul)
a assapar entre a poeira
e os eucaliptos
sempre em direção à praia
Fazes lembrar a alegria
de um risco na parede
desenhado a carvão
pela criança da manhã
É no verde dos teus olhos
que eu treino a disciplina
de uma explosão sossegada
que se vai revelando devagar
ao ritmo das estações concretas
E já agora também é no amarelo
dos teus olhos que eu descanso
da guerrilha do mundo moderno
Aquele que nos fez esquecer
a gargalhada de David
quando derrotou o gigante
(mas olha há sempre um riso
ecoando lento na caverna)
Estamos aqui para vencer a dor
E teu rosto diário faz lembrar
a vitória do tempo sobre o tempo
Porque afinal de contas tu
te pareces muito com a promessa
de uma fé vagarosa & livre
Pareces a coragem, pareces a paz
Pareces mesmo a madrugada egípcia
sobre a qual voa um passarinho.






14.6.22

Onze Anos por Aqui

Edouard Vuillard - Iris et Pensées, 1901 


 Amor e Sexo 

 Amor é um livro 
Sexo é esporte 
Sexo é escolha 
Amor é sorte 
Amor é pensamento, teorema 
Amor é novela 
Sexo é cinema 
Sexo é imaginação, fantasia 
Amor é prosa 
Sexo é poesia 
O amor nos torna patéticos 
Sexo é uma selva de epiléticos 
Amor é cristão 
Sexo é pagão 
Amor é latifúndio 
Sexo é invasão 
Amor é divino 
Sexo é animal 
Amor é bossa nova 
Sexo é carnaval 
Amor é para sempre 
Sexo também 
Sexo é do bom 
Amor é do bem 
Amor sem sexo 
É amizade 
Sexo sem amor 
É vontade 
Amor é um 
Sexo é dois 
Sexo antes 
Amor depois 
Sexo vem dos outros 
E vai embora 
Amor vem de nós 
E demora 
Amor é cristão 
Sexo é pagão 
Amor é latifúndio 
Sexo é invasão 
Amor é divino 
Sexo é animal 
Amor é bossa nova 
Sexo é carnaval 
Amor é isso 
Sexo é aquilo 
E coisa e tal 
E tal e coisa 
Ai o amor Hmm o sexo, ahh 

 Compositores: Arnaldo Jabor / Rita Carvalho / Rita Lee Jones Carvalho / Rita Lee Jones De Carvalho / Roberto Zenobio Affonso De Carvalho Letra de Amor e sexo © Warner Chappell Music, Inc

 https://www.youtube.com/watch?v=ho-iGFctXe8