Por Tanya Volpe
Tenho um amigo que lê à moda antiga. Escolhe um determinado escritor e mergulha em sua obra de uma maneira obstinada e profunda. Consegue passar meses e meses lendo e relendo o mesmo livro, decupando, interpretando, traduzindo.
Já fez isto com alguns autores americanos, passou anos estudando Guimarães Rosa. Sabe diversas passagens de cor e às vezes se refere a elas no meio de outros assuntos.
Hoje anda lendo Proust. É muito estimulante ouvi-lo falando do objeto do seu amor momentâneo com paixão e seriedade.
Em recente viagem, descobriu na casa onde se hospedava , um velho livro que tratava da comida na obra de Proust. Ficou muito empolgado e, conhecendo a minha ligação com França e comida achou que este seria um presente ideal para mim. Como a edição era antiga, esgotada, não foi nada fácil encontrá-la. Mobilizou muita gente para consegui-la e eu recebi meu lindo presente!
Achei que a melhor maneira de agradecê-lo era fazendo um jantar dos “tempos de Proust” para ele e sua mulher. A idéia foi tomando corpo enquanto folheava o livro, olhava as fotos e a decoração da época.
Proust foi contemporâneo de Auguste Escoffier, chef importantíssimo na história da arte culinária, como era chamada então nossa profissão. Foi ele que sistematizou através de seu Le Guide Culinaire de 1902 os procedimentos culinários visando a reprodução serializada. Preocupado com a formação dos profissionais da cozinha, racionalizou a divisão de tarefas de uma brigada e estruturou a imagem a ser adotada por um cozinheiro (limpeza, postura etc). Contratado por César Ritz para comandar as cozinhas do Savoy Hôtel em Londres em 1892, e anos mais tarde, as de vários outros empreendimentos criados pelo milionário, como o Ritz em Paris e o Carlton também em Londres, sabia da importância desse projeto.
Os molhos eram muito importantes na cozinha do século XIX e Escoffier defendia na virada do século a adoção dos mais leves, feitos a partir da redução de caldos, onde o importante era a concentração de sabores, a depuração retirando todos os excessos. Estava aqui um bom ponto de partida para a montagem do meu menu.
Estudar um pouco o meu Guide, (em reedição de set 2009, com o desenho original) tendo o objetivo definido de um jantar harmonioso, equilibrado, e que sugerisse o “sabor “ do começo do século XX na França foi uma delicia !
Aqui vale contar uma curiosidade que encontrei lendo o prefácio da segunda edição de 1907 escrito por Escoffier pelo seu teor “profético”. Escreve ele –“ ... Em uma palavra, a cozinha sem deixar de ser uma arte, se tornará científica e submeterá suas fórmulas, quase todas empíricas a um método e a uma precisão que não deixarão nada ao acaso”. Ele ficaria bem orgulhoso se passeasse por algumas cozinhas de hoje em dia...
Pesquisando descobri que o linguado era peixe importante servido nessa época, e os chefs mostravam a sua maestria, duelando receitas para ele. Estava escolhido. Cogumelos e creme de leite não podiam faltar. Uma receita de frango com estragão e cerefólio me encantou. E assim cruzando as receitas dos dois livros, o do presente e o Guide, criei o menu .
No dia escolhi as louças, a toalha, as taças e, flores que repetiam as que haviam nas fotos de Proust La Cuisine Retrouvée – (Ed Chêne 1991). Comida empratada é novidade dos anos 70, apareceu pelas mãos dos irmãos Jean e Pierre Troisgros em Roanne na nouvelle cuisine, por isso as travessas de prata da minha infância saíram do armário.
O jantar começou com um “oeuf em cocotte”, que servi com um molhinho de cogumelos portobello, partindo de uma “duxelles”, preparação clássica para os ditos cujos.
A receita do linguado foi uma adaptação do “à la normande”. Fiz um molho que levava camarão e mariscos . Parti da redução de fumet de peixe acrescido de caldo de camarão também reduzido. Finalizei com creme de leite e cozinhei até que o conjunto ficasse cremoso. Só no momento de servir juntei os mariscos e camarões. Cozinhei o filet de peixe no forno em um pouco do fumet, enroladinhos com lasquinhas de citron confit. Aqui uma licença contemporânea “autoral”, vamos dizer assim. Finalizei com bastante azedinha picada para contrastar e “quebrar” a doçura do molho.
A receita do frango foi a “sauté chasseur “ . Seu molho veio de uma redução de caldos de cogumelos e de galinha . Os cogumelos fatiados entraram no meio do processo, assim como vinho branco e um pouco de cognac. O toque final ficou com o estragão e cerefólio frescos que trouxeram um sabor anisado ao prato que e eu identifiquei como “antigo”. Adorei a idéia.
Para a sobremesa mousse de morangos que Proust cita em “Sodoma e Gomorra” e evidentemente “les petites madeleines”. Champagne , vinhos, boas conversas e risadas nos acompanharam pelo jantar .
Aos meus amigos queridos, a gratidão imensa pela possibilidade dessa viagem a um tempo de delicadezas, e a certeza que “on n’en sait jamais trop”, como cita Escoffier no prefácio da primeira edição de seu Guide, confirmando aqui , o processo de leituras de meu amigo.
Minha nossa!
ResponderExcluirTanya, como vale a pena esperar pelos seus posts!
você agradece aos seus amigos pela viagem a um tempo de delicadezas, e eu te agradeço pelo momento de prazer que tenho ao ler e sentir as suas experiências maravilhosas.
Você é de mais
Tanya, que lindeza tudo isso! O post, o seu amigo, o jantar, e esse menu literário! Só você pra cozinhar afetos com tanta maestria e delizadeza. Tudo delicioso.
ResponderExcluirNami,
ResponderExcluirSeus comentários me incentivam. Seu olhar é que precioso.
Silvana
O mesmo sobre seus comentários , minha maestrina das letras.
Beijos
maravilhoso seu post............li graças a Adília Belotti que compartilhou. Parabéns !
ResponderExcluirRecomendo...http://www.mensamagazine.it/20090224/home.asp
Meninas, o blog está uma delícia ! Li de cabo a rabo, e ainda não sei se gostei mais do cabo ou do rabo.
ResponderExcluirOs posts da Théa, embora distantes da minha vivência pessoal, encantam e fazem a gente querer conhecer os locais mencionados.
Os posts da Tanya me matam de fome, e eu imediatamente começo a pensar em quais os vinhos que poderiam ser harmonizados com essas refeições magníficas ...
Beijos !
Nivaldo Sanches (velho colega da Thea no Aplicação)
Li o elogio da Nami e fiquei curioso. O texto é tão saboroso como as receitas. Confesso que o pecado que me acometeu não foi o da gula, já que não pude desfrutar do delicioso cardápio, foi a inveja, que tive do seu amigo. Tem um livro de receitas,também muito delicioso, que é de Victor Hugo. Acho que vou procurá-lo procê.(hahaha) João Bosco. (sousajb@terra.com.br)
ResponderExcluirMauro obrigada por passear por aqui, mesmo anônimo.
ResponderExcluirNivaldo, quero sempre aprender sobre vinhos, obrigada.
João, Victor Hugo hummm...pode ser, hein? Essa brincadeira pode ir longe... Será que a gente vai se conhecer assim? Obrigada pelos omentários.