29.10.10

O que não se aprende na escola



Anna Mariani - Jatiúca, Pernambuco/ 1982 - Pinturas e Platibandas IMS 2010
por Tanya Volpe

Tem uma moça nova trabalhando na minha casa .Ela cozinha direitinho,só que eu não posso estar na cozinha quando ela trabalha. Tenho vontade de interferir a todo momento e me meter a “ensinar” como é que se faz aquilo, que ela faz bem, porque resulta em coisas gostosas quando vão para a mesa..

Há tempos venho tentando ensinar a “grelhar” peito de frango ou dourar uma carne de panela. Fechar os “poros” da carne para manter a suculência e deixar bem “crocantinho” sem queimar, são observações que caem no vazio. Ela me olha assustada como se eu sugerisse absurdos. Mas... o frango não vai ficar cru? Não, não vai, depois de dourado abaixe o fogo e fique virando e cuidando que ele vai cozinhando por dentro. É..., (nesse momento concorda comigo) pra cozinhar tem que ficar “cocorando”...Não dá pra largar né? - ela me diz.

Há 2 semanas fomos ver um documentário que um crítico nomeava como sublime. E não pode haver palavra mais adequada para descrevê-lo. Chama-se “Terra Deu, Terra Come “de Rodrigo Siqueira. Vencedor do festival  de documentários “E tudo Verdade” de 2010 .



O filme acompanha seu Pedro de Alexina que comanda como mestre de cerimônias o funeral do amigo João Batista, morto aos 120 anos. Seu Pedro é um contador de histórias fascinantes que vão se entrelaçando, construindo coisas que se misturam e se confundem entre ficção e realidade. Ele, descendente de escravos, foi garimpeiro e é uma das últimas pessoas a conhecer os vissungos - cantos num antigo dialeto africano, o benguela. Esses cantos eram usados durante o trabalho nas minas de ouro e diamantes nos séculos 18 e 19 e sobrevivem nos rituais fúnebres. A história acontece no quilombo Quartel do Indaiá, distrito de Diamantina, Minas Gerais.

O diretor escolheu o caminho da invisibilidade para registrar com extrema delicadeza, o que seu Pedro narra e canta, acompanhado de sua família. A encenação se confunde com a realidade e você fica pelos 80 minutos da projeção, suspenso no tempo, e na razão. Num Brasil profundo, reconhecível e desconhecido.

Rodrigo Siqueira, diretor do filme conta: “... Foram 30 dias de filmagens. Mediado pela imaginação, pela memória dos antepassados e de suas histórias, Pedro me levou a um lugar onde o sertão encontra a África de séculos atrás, onde a morte encontra a vida e onde Deus e o “Outro” coexistem.”

Impregnada com a lembrança do filme, e sem saber, comecei a ler “Gastronomia Sertaneja” de Ana Rita Dantas Suassuna. (São Paulo, Melhoramentos, 2010) .


No último evento do Paladar, dona Ana Rita carregava seu único exemplar do livro pelas salas e, como nos trombávamos nas mesmas, pude observá-la falando algumas vezes de seu livro, entrando na primeira brecha que se lhe apresentava. Naquele momento, não tinha, não tínhamos, incluo aqui alguns professores e palestrantes, idéia do que se tratava aquela obra. Com certeza dona Ana Rita estará no próximo Paladar dando um seminário. Difícil vai ser contê-la no tempo de uma oficina, pois sua paixão e conhecimento do tema parecem ser inesgotáveis.

Coloco-o entre um dos melhores livros de culinária brasileira que conheço, pela simplicidade, profundidade na abordagem do tema, pela clareza na escrita, pelo olhar entusiasmado, e, pelo muito que me ensinou.

Passando por alguns capítulos até chegar na parte das galinhas, fui compreendendo porque a moça que trabalha na minha casa não entende o que eu falo. Quantas linguagens existem por esse Brasil .

O frango com quiabo que ela faz é a paixão de meu marido, e, ao me interessar pelos segredos da receita, me dei conta de um fazer culinário totalmente diferente do meu. Escutei quieta, do lado da panela, suas explicações detalhadas, sem me meter a ensinar o jeito “certo”. Depois encontrei a receita da moça no livro, tal e qual, ali explicitada na sua  história e tradição . Quantas coisas eu não conheço!

Esta moça veio da Bahia, as pesquisas de dona Ana Rita são do interior de Pernambuco,  mas como o sertão alem de “estar em toda parte” como dizia Guimarães , alcança uma grande extensão do território brasileiro subindo desde o sul até as bordas da Amazônia, os modos de comer se encontraram. A culinária sertaneja desenvolve diversas peculiaridades através desse percurso, com variedades ambientais tão amplas, mas mantém personalidade marcante.

Personalidade que vem, sem eu saber, se infiltrar na minha casa, nesse jogo do conhecido desconhecido.

O livro e o filme abrem uma porta para o entendimento desses fazeres , mágicos ou concretos do cotidiano, que esses brasileiros trazem na alma , pura poesia trombando no dia a dia para quem quiser olhar.


Anna Mariani - Timbaúba, Pernambuco /1982 - Pinturas e Platibandas IMS 2010

Terra Deu, Terra Come
Direção: Rodrigo Siqueira
Colaborou na direção: Pedro de Alexina
Fotografia: Pierre de Kerchove

7.10.10

Tempo da Delicadeza

Por Tanya Volpe

Tenho um amigo que lê à moda antiga. Escolhe um determinado escritor e mergulha em sua obra de uma maneira obstinada e profunda. Consegue passar meses e meses lendo e relendo o mesmo livro, decupando, interpretando, traduzindo.
Já fez isto com alguns autores americanos, passou anos estudando Guimarães Rosa. Sabe diversas passagens de cor e às vezes se refere a elas no meio de outros assuntos.
Hoje anda lendo Proust. É muito estimulante ouvi-lo falando do objeto do seu amor momentâneo com paixão e seriedade.

Em recente viagem, descobriu na casa onde se hospedava , um velho livro que tratava da comida na obra de Proust. Ficou muito empolgado e, conhecendo a minha ligação com França e comida achou que este seria um presente ideal para mim. Como a edição era antiga, esgotada, não foi nada fácil encontrá-la. Mobilizou muita gente para consegui-la e eu recebi meu lindo presente!
Achei que a melhor maneira de agradecê-lo era fazendo um jantar dos “tempos de Proust” para ele e sua mulher. A idéia foi tomando corpo enquanto folheava o livro, olhava as fotos e a decoração da época.



Proust foi contemporâneo de Auguste Escoffier, chef importantíssimo na história da arte culinária, como era chamada então nossa profissão. Foi ele que sistematizou através de seu  Le Guide Culinaire de 1902 os procedimentos culinários visando a reprodução serializada. Preocupado com a formação dos profissionais da cozinha, racionalizou a divisão de tarefas de uma brigada e estruturou a imagem a ser adotada por um cozinheiro (limpeza, postura etc). Contratado por César Ritz para comandar as cozinhas do Savoy Hôtel em Londres em 1892, e anos mais tarde, as de vários outros empreendimentos criados pelo milionário, como o Ritz em Paris e o Carlton também em Londres, sabia da importância  desse projeto.

Os molhos eram muito importantes na cozinha do século XIX e Escoffier defendia na virada do século a adoção dos mais leves, feitos a partir da redução de caldos, onde o importante era  a concentração de sabores, a depuração retirando todos os excessos. Estava aqui um bom ponto de partida para a montagem do meu menu.

Estudar um pouco o meu Guide, (em reedição de set 2009, com o desenho original) tendo o objetivo definido de um jantar harmonioso, equilibrado, e que sugerisse o “sabor “ do começo do século XX na França foi uma delicia !

Aqui vale contar uma curiosidade que encontrei  lendo o prefácio da segunda edição de 1907 escrito por Escoffier pelo seu teor “profético”. Escreve ele –“ ... Em uma palavra, a cozinha sem deixar de ser uma arte, se tornará científica e submeterá suas fórmulas, quase todas empíricas a um método e a uma precisão que não deixarão nada ao acaso”. Ele ficaria bem orgulhoso  se passeasse por algumas cozinhas de hoje em dia...

Pesquisando descobri que o linguado era  peixe importante servido nessa época, e os chefs mostravam a sua maestria, duelando receitas para ele. Estava escolhido. Cogumelos e creme de leite não podiam faltar. Uma receita de frango com estragão e cerefólio me encantou. E assim cruzando as receitas dos dois livros, o do presente e o Guide, criei o menu .



No dia escolhi as louças, a toalha, as taças e, flores que repetiam as que haviam nas fotos de  Proust  La Cuisine Retrouvée – (Ed Chêne 1991). Comida empratada é novidade dos anos 70, apareceu  pelas mãos dos irmãos Jean e Pierre Troisgros em Roanne na nouvelle cuisine, por isso as travessas de prata da minha infância saíram do armário.

O jantar começou com um “oeuf em cocotte”, que servi com um molhinho de cogumelos portobello, partindo de uma “duxelles”, preparação clássica para os ditos cujos.



A receita do linguado foi uma adaptação do “à la normande”. Fiz um molho que levava camarão e mariscos . Parti da redução de fumet de peixe acrescido de caldo de camarão também reduzido. Finalizei com creme de leite e cozinhei até que o conjunto ficasse cremoso. Só no momento de servir juntei os mariscos e camarões. Cozinhei o filet de peixe no forno em um pouco do fumet, enroladinhos com lasquinhas de citron confit. Aqui uma licença contemporânea “autoral”, vamos dizer assim. Finalizei com bastante azedinha picada para contrastar e “quebrar” a doçura do molho.




A receita do frango  foi a  “sauté  chasseur “ . Seu molho veio de uma redução de caldos de cogumelos e de galinha . Os cogumelos fatiados entraram no meio do processo, assim como vinho branco e um pouco de cognac. O toque final ficou com o estragão e cerefólio frescos que trouxeram um sabor anisado ao prato que e eu identifiquei como “antigo”. Adorei a idéia.



Para a sobremesa mousse de morangos que Proust cita em “Sodoma e Gomorra”  e evidentemente “les petites madeleines”. Champagne , vinhos, boas conversas e risadas nos acompanharam pelo jantar .



Aos meus amigos queridos, a gratidão imensa pela possibilidade  dessa viagem a  um tempo de delicadezas, e a certeza que “on n’en sait jamais trop”, como cita Escoffier no prefácio da primeira edição de seu Guide, confirmando aqui , o processo de leituras de meu amigo.




5.10.10

Chocolate Delírio


por Tanya Volpe

Com a ligeira diferença de fuso horário de NY e o dia amanhecendo às 4,30h na primavera ,6,30h já é hora para caminhar. Aproveito esse horário, quando as ruas estão mais vazias e as lojas fechadas para escanear todas, quero dizer TODAS, as vitrines.


Em um desses passeios, me deparei com uma vitrine inacreditável. Uma loja, grande, repleta de chocolates! Pelo que eu conseguia ver de fora todas as marcas que eu conhecia, meus potenciais objetos de desejo pela vida estavam por lá. Como a loja só abriria horas depois fotografei a vitrine desapontada.


Segui meu passeio, mas a tal loja não saia da minha cabeça. Resolvi voltar.


Na rua, seguindo essa vitrine dos chocolates, vinha uma de chás, em seguida um mercado e na esquina um café, este já aberto. Entrei e descobri que o café se ligava ao mercado internamente, assim como as outras lojas até chegar a loja de chocolates! Fui entrando meio tímida, e lá estava ela vazia, e totalmente disponível para mim! Eu não acreditava no que estava me acontecendo.


As prateleiras estavam repletas dos melhores chocolates do mundo!!! Encontrei o Amedei italiano, o Valrhona ,o Michel Cluizel e o Pralus franceses, o Akesson's inglês (este com um dos tabletes feito de cacau forastero 75% da Fazenda Monte Alegre da Bahia). Pralinés e trufas artesanais do Läderach suíço e do Charbonnel et Walkers inglês.


Tinha chocolates belgas, espanhóis, venezuelanos, mexicanos, equatorianos. Alem claro, das melhores marcas americanas, Chuao, Askinosie, Vosges, Knipschildt, Taza. TODOS! Todos os que eu conhecia ou tinha ouvido falar! Eventualmente algum empregado da loja passava pela porta e me dizia um good morning sorrindo, como se fosse a coisa mais natural encontrar por ali naquela hora da manhã uma “estrangeira fotógrafa”.



Enquanto “trabalhava” documentando tudo já ia decidindo o que eu voltaria para comprar. Com certeza o Askinosie,chocolate branco com pistaches feito com leite de cabra e um amargo da mesma marca com 62% de cacau, um dos meus preferidos.Uma barra do Amano eu não podia esquecer de pegar.

Aquele outro de Dubai que eu nunca tinha ouvido falar, mas, tinha que provar! Era feito com leite de camela! Um Taza, chocolate feito só com produtos orgânicos, cacau vindo do México, aromatizado com erva mate que era para ser comido ou bebido dissolvido no leite .

Deixei os franceses de lado pois já os conheço bem. Era melhor escolher novidades e o americano Esmeraldas Milk vencedor da medalha de ouro no salão de Chocolate de Los Angeles 2009 na categoria chocolate meio amargo e de produção orgânica sustentável parecia interessante. A curiosidade é que ele traz estampado no invólucro o aviso de que foi elaborado com 50 horas de conchagem!

A conchagem é um dos processos na fabricação do chocolate, onde a pasta de cacau é misturada em uma espécie de tambor, concha, (como os que misturam cimento nas obras), a uma temperatura de 80° o que confere ao chocolate a textura aveludada e refina o seu sabor. Esse processo pode durar de 24 a 72 horas. A especificação desse detalhe de fabricação em um rótulo pode ser explicada pelo crescimento do mercado gastronômico. Os cafés, os chás, os chocolates, os sais, os azeites , precisam vir com especificações cada vez mais minuciosas visando um público interessado em diversificação e personalização.


Voltei lá mais tarde e comprei muita coisa! Percebi que estava me sentindo como se eu tivesse entrado na casinha da bruxa do João e Maria! Só que diferente do João, sai de lá sem dificuldades e muito feliz! Só fiquei gordinha dias depois...

The Food Emporium – Fine Chocolates
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