15.5.12

Tessituras

Royal Porcelain Bowl -  Ca 1900 - Áustria
Com certeza eram outros tempos. E, não faz muito. A vida parecia mais fácil, mais simples, mais doce... O relógio não voava e esta sensação de estar sempre em débito não existia. Sem ter feito o que gostaria de fazer, sem ter lido o que gostaria de ler, sem ter sabido o que gostaria de saber, sem ter encontrado quem gostaria de ver. E mais, comida não estava na moda !


Cozinhar era uma coisa normal ligada ao cotidiano e à história das famílias . Não existia por aqui o arroz italiano, ‘flor de sal’, aceto balsâmico... Foi então que conheci Dona Martha. Mestra cozinheira. 


Paul Cézanne - La table de Cuisine
Para mim ela lembrava sempre uma princesa austríaca sentada ereta em sua poltrona (encostando o dedo indicador dobrado na ponta do nariz enquanto refletia sobre algum assunto ) soberana, no reino da sua cozinha. Ela não precisava  dessas novidades, de engenhocas ou panelas especiais para  transformar em obras primas os nossos ingredientes de todo dia. Alem do dom especial ela trazia a cultura européia. Tinha vivido a guerra e acho que desde então lidar com os recursos disponíveis se tornara um desafio permanente.


Martha Kardos

Eu tive a sorte e o prazer de conhecê-la , e aprender com ela de duas maneiras diferentes.

Dona Martha organizava jantares semanais para sua família . Se não me engano eram às quartas feiras. Seus filhos e netos deveriam confirmar a presença e estavam autorizados a levar um ou dois amigos, sempre com consulta e autorização prévias. O número de pessoas não podia exceder o número de lugares da sua mesa. Como amiga de seu neto André tive a honra de ser convidada  algumas vezes para estes jantares e ali todos os detalhes me encantavam. Fui introduzida ao ritual da comida. Aprendi que cozinhar podia ser muito mais. Compreendi este doce prazer que é planejar,  preparar e oferecer. O chique da simplicidade.  Nesse jantares todos os detalhes estavam pensados para conduzir ao prazer e à surpresa.

© Katie Quinn Davies
 Lembro-me sempre e invejo, seu arquivo de fichas com os nomes dos convidados. O menu completo servido estava lá anotado. Ninguém, salvo pedido expresso, jantaria uma receita repetida. No código de hospitalidade de Dona Martha isto era inconcebível .



Sua mesa ficava encravada em um canto aconchegante da cozinha.
Cozinha e sala de jantar indissociáveis, parte da sua vida.

Meu segundo aprendizado com Dona Martha deu-se em suas aulas de cozinha propriamente ditas. Aí a coisa era séria. As brincadeiras estavam proibidas. Não era à toa. Toda a educação e cultura européia afloravam . Foi lá que ouvi falar de técnica culinária. A maneira correta de fazer uma omelete, o molho branco, a massa ‘podre’. Como misturar claras em neve e derreter gelatina em folha. A ordem de entrada dos ingredientes em uma receita.

Ao compartilhar seus conhecimentos multiplicava uma das suas principais características, a generosidade.

A presença de um neto fez com que nosso curso fugisse um pouco do formato habitual. Montamos um grupo de amigos, homens e mulheres. Não eram muitos os homens que se aventuravam na cozinha naquele tempo. Como éramos todos amigos, dividíamos a compra de ingredientes, fazíamos as aulas aos sábados à tarde e nos encontrávamos à noite para jantar nossa obra. Que festa!

© Katie Quinn Davies

Passeávamos por vários clássicos de Martha. Gulasch, tradicional e à maneira austríaca por exemplo. Em nenhum lugar comi outro igual. Sua receita é um tesouro! E também conseguimos algumas receitas da vó Martha. Pequenos mimos de avó para seu neto, guloseimas saboreadas em lembranças de tardes infantis. Nosso grupo (bem mais crescidinho)  pôde experimentar o bolinho de batata e ameixa , a omelete quente de geléia. Receitas onde o fio da descendência era tecido,  e assegurava aos netos a concretude da pertinência .
 Orgulhosamente me sinto pertencente à linhagem dos filhotes de Martha. E, para mim está muito claro que eram outros os tempos. As pessoas com a, educação, classe e a gentileza de Martha infelizmente andam rareando no século XXI.


7 comentários:

  1. Lindo texto ,Tã . Dá vontade de voltar no tempo e ser uma convidada de Dona Martha . Parabéns . beijo.

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  2. Tan, então foi assim que tudo começou...? Eu sempre quis te perguntar!
    A sua história com dona Martha pode fazer parte de outro tempo, mas segue despertando o apetite da gente pelas coisas boas da vida.
    beijo

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  3. Tan, que encanto! Delícias de uma paisagem distante!
    Um beijo enorme

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  4. Marli Dallanora15/05/2012, 17:17

    Adorei seu texo, muito gostoso de ler e refletir. Parabéns!

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  5. Queridas amigas, muito obrigada pelos comentários e o carinho de sempre !
    É bom saber quando nossas lembranças despertam afetos e ternuras. Merci

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